Vendo os depoimentos dos manifestantes anti-Bush, e observando in loco os últimos remanescentes da dispersão pela polícia (trabalho na Paulista), tive uma sensação meio ruim, que já vinha tendo sempre que lia o Indymedia brasileiro: o movimento de Seattle foi sequestrado pela velha esquerda.
É obviamente legítimo protestar contra Bush, cuja estratégia para o Iraque se revelou flagrantemente horrorosa. Agora, há várias coisas que podem ser ditas diante do problema Bush, e não me parece que os manifestantes, ou que a turma do no-global, ou do "altermundismo", estejam dizendo as mais inteligentes.
Em primeiro lugar, o Iraque: sempre fui contra a guerra do Iraque, por achar que só se faz guerra em último caso. A justificativa para começar era ruim, e a confiança inspirada por Bush (que afundou Blair no processo) era zero. Agora, há dois argumentos usados pelos manifestantes que não me convencem absolutamente:
1) É sempre errado invadir o país dos outros. Isso me parece um absurdo grotesco: o Vietnam invadiu o Camboja e interrompeu o massacre do Khmer Vermelho; o que há de errado nisso? Os aliados invadiram a Alemanha e derrubaram Hitler: o que poderia ser mais certo? Se alguém tivesse invadido Ruanda e impedido o massacre, os altermundistas se oporiam a isso?
2) Os EUA são um Império mundial, e por isso combatê-los é lutar pela liberdade. Essa é realmente triste. Os EUA são um hegemon: eles são mais poderosos do que os outros países, e por isso ditam a agenda internacional. Não há nada que diga, de antemão, que essa agenda será boa ou ruim: isso dependerá dos interesses de cada país ou classe social, e da negociação política. Resistir cegamente aos EUA só serve aos interesses de hegemons alternativos, em geral regionais. Quando os altermundistas fazem isso, seguem os reflexos da velha esquerda, que defendia sempre os interesses geopolíticos da URSS. Porque continuar com a mesma leitura do mundo agora?
Também é notável a mudança de autores citados. Me lembro de Hardt escrevendo no Guardian sobre o risco do anti-americanismo ("Porque apoiar um reacionário como Chirac?"), me lembro de Monbiot escrevendo, no mesmo jornal, "I was wrong about trade", reconhecendo que a defesa do livre-comércio pode muitas vezes ser do interesse dos oprimidos. Não vejo mais ninguém citando essa turma, que dava a tônica do debate altermundista nos anos 90, no site do Indymedia, mas vejo toda a velharada: o PSTUpido, o PCO, os velhos stalinistas de sempre, e, suprema aberração, uns maoístas. Um cartaz preso num poste da paulista por uns trotskos meio toscos conclama uma reavaliação do movimento pela paz, que deve ser redirecionado para uma revolução anti-imperialista.
E, o mais triste: é comum que se leia no Indymedia brasileiro manifestações francamente anti-semitas, como as charges de um tal de Latuff, premiado no concurso iraniano de charges sobre o holocausto. A infiltração, que já era um risco nos velhos tempos da velha esquerda, agora é aberta, pelo sequestro de uma bandeira do altermundismo, o relativismo cultural.
O altermundismo de Seattle sempre teve o potencial de virar uma merda: estava francamente errado sobre muitas coisas. Mas era, sem dúvida, uma erupção de dinamismo político saudável, e tinha o potencial para se reformar e tornar-se a base de uma esquerda mundial inteligente. Entre as muitas vitórias de Osama está essa: após o 11 de Setembro, quando surge o conflito entre o capitalismo global e um ultra-reacionarismo cultural, Seattle, ainda sem uma boa análise das possibilidades de uma nova política mundial - que dependeria, fundamentalmente, da democracia - é sequestrada pela paleoesquerda anti-americana.
Não por acaso, os movimentos de protesto contra a OMC param quando a reunião é em Doha, Emirados Árabes, onde, evidentemente, nenhum protesto é permitido. Ninguém soube ler essa situação? Daí em diante, Bush invade o Iraque, e Seattle se perde no meio do movimento contra a guerra, puramente reativo e fortemente marcado pelo discurso da velha esquerda.
Perdeu-se uma chance.
Monday, March 12, 2007
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