Para não dizerem que só o pessoal de esquerda recebe atenção aqui, vale a pena discutir esse livro, de um dos caras pioneiros do bloguismo político, sempre linkado aí do lado (se você não achar, olhe aqui), O Andrew Sullivan. O Sullivan é republicano, conservador (em um sentido definido no livro), católico e, vejam só, militante gay.
A primeira coisa que eu percebi no livro é que ele não foi escrito pra mim. Ele não foi feito pra convencer quem é de esquerda a ser conservador. Ele supõe que o leitor já é meio propenso a ser conservador, em algum dos sentidos possíveis, e argumenta a favor de um desses sentidos. Por isso, há vários trechos coisas que ele dá de barato que fazem o sangue de um esquerdista, mesmo moderado, ferver. Mas, convenhamos, isso não é problema dele, e quem se meteu a ler o livro dele fui eu.
O objetivo do livro é defender uma concepção de conservadorismo baseado na dúvida, oposta à concepção baseada na certeza fundamentalista do Bush e seus colegas religiosos republicanos. O conservadorismo fundamentalista é baseado no apego a certezas inquestionáveis, a ideais indiscutíveis, e, o que é crucial, na idéia de que o governo deve ter como um de seus objetivos promover esses ideais e essas virtudes. A base teórica do troço é a doutrina do direito natural, em versões como a do jusnaturalista americano Richard John Neuhaus. Idéia central: devemos organizar as coisas segundo seu propósito natural. Dessa perspectiva, sexo serve para a reprodução, e o homossexualismo - mas também a masturbação, o sexo oral entre homem e mulher, etc. - são desvios a serem punidos. Um dos malucos citados por Sullivan argumenta, sem rir, que não há argumento de princípio possível contra a proibição legal da masturbação - ele só se opõe à idéia porque seria meio difícil colocá-la em prática.
O problema com essa idéia é que, se formos usar a natureza como fundamento, a moralidade meio que vai pras picas. Há fortes sinais de que os humanos são naturalmente propensos ao adultério, à violência, à fraude. Mas não é dessa natureza que os jusnaturalistas estão falando. É da natureza que embasa os seus raciocínios, uma natureza abstrata. Mas a natureza abstrata é só abstrata, não há nada que garanta que é natural, no sentido de ser algo que é uma propriedade do mundo. Como a graça de dizer que algo é "de acordo com a natureza" é mostrar que está de acordo com o mundo, o raciocínio é meio capenga.
Contra esse negócio todo - e no livro há pilhas de evidências de que esse tipo de raciocínio influenciou pesadamente grandes figuras do establishment republicano pós-Bush II - Sullivan propõe um outro conservadorismo, inspirado no Michael Oakshott (sobre quem Sullivan escreveu seu doutorado em Harvard). Tanto quanto eu consigo resumir, tal conservadorismo seria baseado nas seguintes idéias: 1) Nós não sabemos a verdade divina, por isso é melhor não arriscar muito, é melhor não ter grandes planos de salvação para a humanidade, é melhor se precaver para o pior, e só se mover quando parecer seguro e necessário. 2) Quebrar é muito mais fácil que construir, por isso só devemos nos meter a mudar as instituições, os valores, etc., quando isso for evidentemente necessário. 3) Esse limite de conhecimento, que limita enormenente as possibilidades da política, potencializa a liberdade individual, pois autoriza, dentro dos limites clássicos do liberalismo, a experimentação livre, único modo de progredir, lenta e claudicantemente, rumo a maior conhecimento e felicidade.
Por isso, um conservador como o Sullivan tem que partir pra porrada contra o Bush. O Bush apóia a tortura, deixando de garantir, portanto, a primeira e fundamental exigência de um conservador cético frente ao governo: me garanta contra o pior, a morte, a violência. O Bush quer impor uma visão de mundo cristã (muito particular, aliás) às pessoas, mesmo que contra sua vontade, e tenta a todo custo impedir que pessoas como o Sullivan experimentem uma coisa diferente (que só afetará a vida dos diretamente envolvidos), o casamento gay. E, erro dos erros para um conservador cético, o Bush foi pra guerra achando que o importante era estar moralmente certo, sem se preocupar com as consequências, sem levar em conta a realidade concreta do Iraque, sem mobilizar recursos suficientes caso o pior - a guerra civil, por exemplo - acontecesse.
No final do livro há um trecho que eu achei especialmente interessante. Um conservador bushiano poderia argumentar que muito do mundo que o Sullivan pretende conservar - direitos gays, liberdade sexual, liberdade de opinião, etc. - é o produto da ação dos "liberals" (no vocabulário americano, a esquerda classe média - os tucanos, digamos). E Sullivan diz: é isso aí. Mas o conservador começa com o mundo que tem. Na frase interessante de Oakshott, o conservador vai atrás das intimações da realidade: se o pessoal resolveu virar gay e casar, não sou eu que vou dar porrada neles; vou tentar acomodar isso na ordem dominante, criando uniões civis ou extendendo a instituição milenar do casamento aos gays.
Porque o livro me interessa (além da saudável curiosidade intelectual que todos devemos ter): primeiro, porque é sempre bom ver a turma do Bush levando uma surra (ah, levam sim). Segundo, porque essa concepção do conservadorismo como ceticismo, como cuidado, embora não seja a minha, certamente tem muito a ensinar. É pouco terapêutico para quem é de esquerda (e sempre corre o risco de querer andar depressa demais) tomar uns banhos de ceticismo conservador de vez em quando. Até porque há experiências e tradições bem-sucedidas na esquerda, como a social-democracia escandinava, com as quais os conservadores (Sullivan e os liberais inclusos, mas também incluso os paleo-esquerdistas) não parecem ter o mesmo respeito.
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