A história tem o pior começo possível: há poucos anos, no interior do Paquistão, um jovem de um clã subalterno foi julgado por um conselho tribal formado por membros do clã dominante. Julgado culpado, ouviu a pena: sua irmã seria estuprada pelos membros do clã superior ali mesmo. E assim foi. Sua irmã, Mukhtai Mai, foi estuprada por quatro homens, ali mesmo. Satisfeito o último estuprador, Mukhtai Mai voltou para casa semi-nua, sob o ridículo de cerca de 300 pessoas da vila. Casos como esse já haviam acontecido antes, e todos esperavam que Mukhtai Mai agisse como as outras vítimas que a precederam no chão do tribunal, tirando a própria vida em desonra.
Aí a história vira: após o 11 de Setembro, o Paquistão tornou-se um aliado estratégico dos EUA na luta contrao terrorismo. Parte da opinião pública americana mostrou-se apreensiva com a aliança, dado o caráter eminentemente autoritário do regime do General Musharraf, que, aliás, foi quem armou metade dos malucos com bomba atômica em atividade no mundo. Todos os olhos da sociedade americana caem sobre o Paquistão, que precisa mostrar que afinal não é tão ditatorial assim, e até faz uma eleiçãozinha meio mixuruca. É nesse momento que se dá o estupro de Mukhtai Mai, que, auxiliada por um clérigo islâmico, percebe a oportunidade. Pelo menos enquanto os americanos estiverem olhando, o Paquistão precisa agir como uma sociedade mais ou menos aberta. Com isto em mente, Mukhtar Mai vai aos tribunais contra seus agressores, que, nesse raro momento em que o judiciário paquistanês recebe permissão para atuar de verdade, os condena à morte.
De repente, a história é uma maravilha. Com a indenização que recebe, Mukhtar Mai constrói duas escolas, uma para meninas e outra para meninos, em seu vilarejo. A história é então descoberta pelo jornalista Nicholas D. Kristoff, do New York Times, que estava em viagem pelo Paquistão. Após contar a história em sua coluna, o jornalista recebe 133.000 dólares de leitores para Mukhtar Mai, que são passados à organização filantrópica americana Mercy Corps. Com a ajuda da organização, Mukhtar Mai administra o dinheiro e consegue abrir um abrigo para vítimas de estupro e comprar uma ambulância para o vilarejo. Inacreditavelmente, se esforça para matricular os filhos de seus agressores nas escolas que fundou. Torna-se então um símbolo da luta das mulheres no Paquistão pela liberdade e contra práticas arraigadas como os assassinatos e estupros "pela honra" e a prática de jogar ácido em mulheres caídas em desgraça.
Mas, sendo o mundo como é, a história enlouquece. Quando, há poucas semanas, Mukhtar Mai se prepara para ir aos EUA dar uma palestra em uma organização paquistano-americana, o governo paquistanês se apavora com a possibilidade dela manchar a imagem do Paquistão no exterior, e coloca-a em cárcere privado, cortando inclusive sua linha telefônica. Através de seu celular, Mukhtar Mai denuncia a arbitrariedade ao mundo. Em um ato de extraordinário barbarismo, o governo a sequestra, e, a crer no depoimento de sua advogada, a mantém até agora incomunicável em Islamabad.
Relativismo é legal, eu também gosto, mas TEM COISA QUE NÃO PODE. Por isso, é necessário protestar contra o governo do Paquistão pelo tratamento dado à senhorita Mai. Cartas podem ser enviadas à embaixada paquistanesa no seguinte endereço:
Embaixada da República Islâmica do Paquistão - Brasília - DF SHIS QL 12, conj. 02, casa 19 - Lago Sul CEP 71630-225 - Brasília - DF tel. (0xx61) 364-1632 e 364-1761 tel. 61-2252 EPAQ BR fax (0xx61) 248-0246 e-mail: parepbra@brnet.com.br Expediente(s): segunda a sexta-feira - 08:30 - 16:00 hs
As cartas devem ser educadas, até por que o funcionário da embaixada, assim como certamente a maioria do povo paquistanês, deve estar tão indignado quanto nós, embora certamente não o possam demonstrar. Um modelo de carta pode ser o seguinte:
“Caro Senhor,
É com imenso respeito que me dirijo à Embaixada no Brasil da grande nação paquistanesa. Mas também o faço com grande apreensão.
A crer em reportagem publicada no New York Times do último dia 14, a Sra. Mukhtar Mai é no momento vítima de gravíssimas violações de direitos humanos por parte do governo paquistanês. Em nome do respeito à justiça que certamente une nossos povos, junto aqui minha voz aos que pedem pela imediata libertação da Sra. Mukhtar Mai, bem como sua proteção contra qualquer ato da parte de seus agressores originais.
Grato por sua gentil atenção,”
Mais informações sobre o caso podem ser obtidos no site www.mukhtarmai.com, ou em qualquer das grandes organizações de defesa das mulheres e dos direitos humanos.
Wednesday, June 15, 2005
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2 comments:
O caso de Mukhtar Mai já havia sido noticiado antes, primeiro pela Time Asian em 12 de outubro de 2004 (veja em http://www.time.com/time/asia/magazine/printout/0,13675,501041011-709178,00.html e depois pela BBC, em dezembro do mesmo ano. (http://news.bbc.co.uk/1/hi/world/south_asia/4042941.stm. Eu mesmo soube do caso pelo informativo da BBC Brasil, no fim do ano passado, mas não sabia do que o governo do Paquistão fez com ela agora.
Esse caso, assim como outros conflitos decorrentes da globalização (ex: a relutância da França e da Holanda em assinarem a Constituição européia, e mais ainda em terem a Turquia como membro da comunidade; ataques a cemitérios judaicos na Alemanha, imigrantes marroquinos mortos na Espanha, atentados e mais atentados e mais atentados etc)na verdade nos força a pensar em um problema urgente: o relativismo antropológico e o discurso da diferença não se transformaram: (1) na nova ideologia de uma globalização a la EUA; (2) em um discurso já assimilado pelo senso comum e (3) em uma espécie de racismo, que afirma a cultura como uma nova espécie de essência ou de natureza humana - algo do tipo "somos de culturas diferentes, logo de naturezas diferentes"...
Mais do que uma simples provocação, chamo a atenção para o fato de que a direita americana já produziu, se não a sua versão do discurso da diferença, pelo menos uma apropriação desse discurso que está sendo utilizado para coisas do tipo: propor que Arnold Schwazenegger seja o próximo presidente dos Estados Unidos, um novo tipo de policiamento particularizado e específico, como a que faz a polícia de Nova Iorque quando contrata policiais gays para fazer o patrulhamento de guetos gays.
Com isso eu quero dizer que o discurso da diferença, do elogia da diferença contra a "normatização", já foi absorvido enquanto uma ideologia, incorporada pelo Estado e neutralizada enquanto argumento libertário. Isto porque, creio, falta pensar, primeiro, as necessidades, os pontos de contato, de conflito, de interlocução entre as pluralidades que caracterizam as sociedades e pensá-las de uma forma política e jurídica, ou seja, quais as regras nacionais e internacionais que regulam os limites de convicência entre os diferentes? E com relação às desigualdades entre os diferentes, como garantir uma isonomia no tratamente entre essas desigualdades?
Não penso ser possível qualquer debate sobre globalização que não leve em consideração a formulação de regras legais que regulem e disciplinem essas diferenças, no sentido de suas liberdades. Nem o elogio puro e simples da diferença elimina a questão da igualdade, nem a realização de uma convivência decente e libertária entre as diferenças pode prescindir de instâncias legais. (Sobre isso ver Deleuze, Proust e os signos)
Nesse sentido nem se trata de falar de um relativismo, mas do fato de que Mukhtar Mai está recebendo um tratamento brutal que não pode ser justificado em nome de nenhum relativismo. Aliás, qualquer argumento do tipo "isso é um problema da cultura deles" só pode ser visto como cinismo puro...
Uma última: seria o caso de se debater se o pensamento da diferença, no Brasil, não está sendo (ou se já não foi) seqüestrado por essa máquina infernal de afirmação de brasilidade que se manifesta na TV, nas novelas, no esporte, na propaganda governamental etc., se a diferença não foi assimilada enquanto mestiçagem (outra vez...) e se não estamos todos inseridos compulsoriamente nos romances do Jorge Amado...
Fica para pensar.
Celso, seguem os endereços eletrônicos:
http://www.geocities.com/renatogimenes. Aqui é a minha página pessoal.
http://tempodefora.blog-city.com. Blog com algumas literatices...
http://www.renatogimenes.bravejournal.com - blog que eu estou montando com algumas reflexões sobre historiografia e ciências humanas.
Segue também uma sugestão. Dê uma olhada em www.alternet.org. Abraços!!!
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