Saturday, September 16, 2006

Charles Bettelheim (1922-2006)



Só hoje eu soube que, no dia 20 de Julho último, faleceu o Charles Bettelheim, economista francês que eu estudei no meu mestrado. Que Deus o tenha.

Há alguns obituários na web, e, normalmente, eu não me interessaria em fazer outro, mas resolvi falar sobre o assunto. Bem ou mal, o Bettelheim foi muito importante para meu desenvolvimento intelectual, tanto na minha entrada quanto na minha saída do marxismo. E eu acho sacanagem que fique dele a imagem que os obituários estão fazendo.

Bettelheim foi Stalinista, foi suspenso do PCF por ter criticado o que viu quando morou na URSS, apoiou as denúncias do Kruschev, mas acabou tendo uma recaída e apoiando o maoísmo, até que, depois da morte do Mao, abandonou isso também. Foi intelocutor de todos os grandes esforços de planificação do terceiro mundo, tendo dado assessoria, de uma forma ou de outra, para o Nasser, o Nehru, os argelinos, e se metido numa briga com o Guevara, que, como o Stalin, apoiava uma estratégia de crescimento voluntarista (sem perder a ternura é o caralho).

No meio dessa confusão toda, teve tempo de escrever um livro interessante pra caramba: Cálculo Econômico e Formas de Propriedade, em que argumentou mais ou menos o seguinte (a explicação é minha): planejar é organizar variáveis, variáveis medem coisas, variáveis sociais medem a informação transmitida por relações sociais. Se as relações sociais são as do capitalismo, não interessa o quanto você queira planejar, você vai medir valor (no sentido marxista). Afinal, se a estrutura produtiva ainda é a fábrica capitalista ( e esse era o caso no socialismo real), o que você está planejando é a informação gerada pela fábrica capitalista, cujas relações de poder, em especial a acumulação de poder e responsabilidade com os gerentes, favorece sua autonomia. No final das contas, você vai planejar o que fábricas capitalistas precisam para funcionar, o que é melhor medido com os conceitos do capitalismo. Um discípulo do Bettelheim, o Bernard Chavance, descreveu como, no vocabulário socialista, aos poucos surgem as expressões "preços socialistas", "mercado socialista", etc. Como diria Marx, essas grandezas se produzem por abstração real, isto é, é o próprio mercado as calcula, e se você não deixar o mercado funcionar, não adianta. Resultado: se você não conseguir mexer na fábrica capitalista, uma hora vai ter que voltar com o mercado, que, naturalmente só funciona direito se você der a propriedade jurídica para os gerentes. Bingo.

Mais tarde o Bettelheim escreveu sua obra mais famosa, "As Lutas de Classe na URSS", o livro de história mais esquisito que eu já vi, por que, de volume em volume, o Bettelheim ia mudando de posição política, sem reescrever o período anterior. Desse modo, os dois volumes iniciais, onde ele trata da URSS do Lenin e da ascensão do Stalin, ele acha que, dada a divisão do trabalho na fábrica, as relações de produção na URSS continuavam capitalistas, mas a direção do Lenin era bacana, de maneira que a sociedade soviética era um "Capitalismo de Estado sob Ditadura do Proletariado", expressão, que, aliás, era do Lenin, mesmo. Lembremos que antes de morrer o Lenin deu uma grande moderada econômica com a NEP.

Isso era, obviamente, uma papagaiada miserável: se o Marx soubesse que um discípulo seu descreveu uma sociedade pelo tipo de política implementada por sua liderança, certamente o estrangularia com suas próprias mãos. Talvez por medo do fantasma do Marx, e depois de ter visto que o Maoísmo tinha dado merda, Bettelheim, nos dois últimos volumes das LCURSS, revisou a coisa toda, aceitou a tese do totalitarismo para descrever as sociedades de tipo soviético, e, o que eu não vejo ninguém dizer, sugeriu que não era mais o caso de ficar sendo marxista, o melhor era fazer socio-análise (senão me engano, o termo é do Bourdieu). Leu os filósofos e economistas dissidentes húngaros, o Lefort, e escreveu o que, na minha opinião, são os dois melhores livros da série. A turma que ainda gosta do CB não concorda comigo, tanto que os dois últimos volumes ainda não foram publicados no Brasil, e, aliás, só outro dia foram publicados nos EUA.

Em um texto na revista da academia de economia húngara, que os Bettelheimistas de plantão não leram, CB sugere, nos anos oitenta, amplas reformas de mercado (embora não exatamente a transição radical dos anos noventa, quando CB já havia se retirado da cena). Seus discípulos Jacques Sapir e Bernard Chavance desenvolvem bem os últimos insights de Bettelheim após sua conversão à Escola Francesa da Regulação, cujo débito com o Bettelheim é reconhecido (vejam o livro do Boyer). Recomendo, do Sapir, L'Économie Mobilisé, sobre a URSS, e Le Krach Russe, sobre a crise russa de 98 (que eu saiba, o melhor livro sobre o tema).

Em suma: alguém tem alguma boa idéia de como organizar a produção, mantendo o que queremos preservar da modernidade, sem a fábrica capitalista? Não. Os experimentos maoístas nesse sentido (com as comunas substituindo as fazendas) foram uma besteira, e resultaram na morte de 20 milhões de pessoas na mais abjeta fome. Portanto, não adianta ficar brincando que estatização é um fim em si, ou que, mesmo que estatizar tudo não seja uma boa, estatizar bastante ainda é legal. Se o Bettelheim estivesse ativo nos anos 90, veria que, no longo prazo, os velhos stalinistas da Rússia ainda nos forneceriam o deprimente espetáculo de sua conversão nos tipos mais sórdidos de capitalista, sem nenhum respeito pelo bom e velho direito burguês.

Se você procurar na Internet, vai achar uns obituários exaltando o marxismo do Bettelheim. Mas o que é legal é que o Bettelheim, com sua obsessão solidamente marxista com as relações de produção, foi uma demonstração viva de como o projeto político do marxismo (e do Marx) não está à altura da teoria.

Estudando o Bettelheim, portanto, aprendi: leiam o Marx, aprendam a importância das relações de produção e das classes sociais, quebrem a cabeça entendendo como o mercado se relaciona com elas, não sejam bolcheviques nem para-bolcheviques.

Depois de explicar como Bettelheim me livrou do bolchevismo, qualquer dia desses escreverei como Hayek me converteu à social-democracia (mais um capítulo da série "Como se isso interessasse a alguém").


PS: para quem estiver interessado, há pouco tempo saiu um artigo sobre o Bettelheim nos Actes de la Recherche en Sciences Sociales, disponível aqui. É bem oficialzão, sem teoria, mas biograficamente informativo.

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